01: Savana

A translucidez da janela permitia o par de olhos amarelos assistir o cenário transformar-se conforme a carruagem aprofundava-se em seu caminho. Os vastos mantos de areia do espaço desértico cediam lugar à uma tímida vegetação, rasteira à princípio, até que a copa de alguns arbustos também emergiram. Entretanto, o calor e a sequidão perduravam; simplesmente teria de aprender a conviver com ambos, requisito fundamental para desempenhar com sucesso a tarefa que lhe fora incubida.

Os últimos minutos de alento sob a pompa da carruagem permitiu Mayev meditar, refletindo sobre os últimos fatos e palavras transmitidas. Procurava desembaraçar aquelas lembranças torpes que ainda detinha do embate contra o bersekers que os precedera no Submundo, até onde sua mente tinha acesso à elas. Mas eram nas mãos de Lúcifer e seus anjos, afinal, que caía o mérito da rendição de Pandora, a feroz dama dos mortos. A regente lhes era cara de alguma forma, ou não teria sido poupada e mantida sob controle, restava prognosticar o motivo. Não obstante, um relacionamento obscuro envolvia os anjos de Lúcifer e a legião de Ares; Lúcifer possuía as rédeas, mas no campo de batalha, era dos malditos animaizinhos domados de Ares que seu coração retinha desprezo e lembranças.

A presença da ofídia, dita "companheira" de All, em nada perturbava a serenidade da juíza, mesmo espalhada pelo chão da carruagem e quase lhe tocando os pés. Balrog abriu os olhos devagar, um deles parcialmente oculto nas sombras das pontas dos dedos que lhe apoiavam a face. Mirou Basilisco com o único olho à vista, fazendo-se escutar de sua voz tranqüila, suave como a da mais doce aia.

- Gostaria de uma descrição mais precisa dos artefatos que devemos encontrar. Por certo encontraremos crânios na extensão desta savana, seja de animais ou humanos perecidos, ou simples ornamentos esculpidos por apologistas de determinadas seitas. Na terra de onde vim, quanto mais valioso um artefato, maior a discrição empregada em seus entalhes - a vulgaridade ajuda a escondê-los.

Disse ainda dentro da carruagem, segundos antes desta alcançar seu destino. Mayev galgou até a porta, transpassando-a sem cerimônias.
Ainda no ar, as asas demoníacas da súrplice, outrora recolhidas para melhor caber no interior do veículo, expandiram-se num único e belo rompante, projetando uma vasta penumbra no solo abaixo. Atuaram tal qual asas que eram, retendo o ar em seus arcos e permitindo a mulher um pouso controlado em meio a trilha ali presente - ainda assim, brusco o suficiente para deixar cravada nesta duas pequenas rachaduras provenientes do salto alto da súrplice abaixo de seus calcanhares. A aterrissagem forçou Balrog a flexionar as pernas, quase ajoelhando, erguendo-se em seguida. Ouviu uma indagação ousada de All, não sabendo se era diecionada a si ou ao cocheiro que os trouxera. Por via das dúvidas ela mesma o respondeu, simplesmente mostrando a ponta da língua em um muxoxo também desaforado - que ele certamente captaria ao vasculhar a assinatura térmica do local.

Enquanto Basilisco atentava-se a movimentações e cosmos próximos, Mayev adiantou-se até a trilha e ali curvou-se, criando apoio em um joelho sobre o chão. Deslizou com suavidez as pontas dos "frágeis" dedos pelo solo, seu fito amarelo e compenetrado a rastrear possíveis marcas, como pegadas. Procurou também vestígios na vegetação em volta - talvez até mesmo de outros espectros que estiveram ali e intencionasse guiá-los.

- Como se sente, belíssimo? Percebi como o clima do deserto o prejudicou.